O maior ídolo da música popular brasileira contou, em 1985, como criou sua famosa canção, e revelou também uma surpreendente afinidade com os caminhoneiros – depois de dirigir uma carreta com a competência de um profissional
Os milhões de brasileiros que assistem religiosamente a seu show na televisão, todo fim de ano, encantaram-se com a figura de seu ídolo, eternamente doce, mas desta vez emoldurado pelo cenário forte de uma cabine de caminhão a percorrer estradas poeirentas. Roberto Carlos foi caminhoneiro por um dia.
No meio dessa multidão de espectadores, os caminhoneiros de verdade, por sua vez, puderam ver no rapaz charmoso e feliz, que cruzava com tantos amigos ao longo do caminho, a imagem talvez mais cara que idealizariam para si próprios. Para esses, Roberto Carlos tornou-se caminhoneiro para o resto da vida.
A identificação, entretanto, não se deu apenas por conta dos artifícios da televisão. Roberto Carlos tem uma ligação especial com os caminhoneiros, fruto de lembranças que foram o fermento da canção que constitui o principal destaque do disco que lançou no final do ano.
Mais que isso! Durante a gravação do show, Roberto aprendeu a dirigir uma carreta — e era quase impossível fazê-lo sair da boleia, tal seu entusiasmo e sua competência, que levou o instrutor a considerar seu desempenho melhor que o de alguns motoristas profissionais.
A canção Caminhoneiro, puxando um LP que em janeiro já tinha superado a marca de 2 milhões de unidades vendidas, foi também um sopro renovador na carreira de Roberto Carlos. “Seu repertório andava carente de surpresas nos últimos anos. Caminhoneiro vem preencher essa lacuna”, comentou o crítico da revista Veja, Okky de Souza. Para os caminhoneiros, a canção representou também uma espécie de “reconhecimento público”. Como observou outro crítico, Zuza Homem de Mello, do jornal O Estado de S.Paulo, ter Roberto Carlos “a seu lado” é uma prova da importância dos caminhoneiros “como classe social participante”.
Nesta entrevista, Roberto Carlos explica pela primeira vez a história de sua canção e faz surpreendentes revelações sobre sua proximidade com o mundo dos caminhoneiros.
REVISTA CAMINHONEIRO (C) — Esta deve ter sido a primeira vez que, ao fazer uma canção, você encarnou a figura de um profissional — no caso, o caminhoneiro. Você não apenas fala dele; nessa música, você é um caminhoneiro. Você se lembra de ter feito o mesmo antes em relação a outra profissão?
ROBERTO (R) — Não. Realmente não. [Pensativo.] Você tem razão... Sabe que eu não tinha me dado conta disso? Mas... [convicto, certificando-se] É verdade: é a primeira vez que falo assim de um profissional. Acho que, se falei de outros, não falei dessa forma...
C. — Qual a explicação?
R. — O caminhoneiro sempre foi para mim uma figura fascinante. Eu o vejo como alguém forte, corajoso. Sobretudo corajoso. Mas também com uma imagem muito romântica.
C. — Há muito de lírico na vida dele, nesse movimento de ir e vir.
R. — Quando vai, tem um aceno... quando vem, tem um aceno também... Está sempre fazendo esse gesto. E nesse gesto tem sempre alguma coisa de amor, de saudade, ou de alegria.
C. — Em alguma época você teve contato maior com caminhoneiros?
R. — Em Cachoeiro [Cachoeiro do Itapemirim, cidade natal do cantor, no Espírito Santo], havia um depósito de Coca-Cola a uns 15 metros de minha casa, do outro lado da rua. As estradas, na época, não tinham asfalto, e os caminhões enfrentavam uma barra pesada, trazendo garrafas de Niterói. Eu via aqueles caminhões chegando, às vezes cheios de lama.
Alguns nem conseguiam chegar. Eu tinha nove anos e gostava de ficar ouvindo aquelas histórias, contadas pelos caminhoneiros e por seus ajudantes. Gostava de ficar observando como eles colocavam as caixas na carroceria, o tipo de amarração que faziam. Observava eles botarem o encerado quando ameaçava chover... todas essas coisas me fascinavam.
C. — E agora, quando foi compor a canção...
R. — Todas aquelas imagens me vieram à memória. Comecei a compor já falando do ponto de vista do caminhoneiro, isto é, falando da boleia para fora.
C. — Colocando-se no lugar do caminhoneiro.
R. — É, todas aquelas coisas que ele vive ali dentro, suas emoções, a mulher amada à espera. Que isso é também um pouco como a vida do artista, que está sempre viajando e, na volta, está sempre na expectativa de encontrar a mulher amada à espera. O caminhoneiro e o artista são viajantes. Sempre digo que a vida do caminhoneiro e a do artista são muito parecidas.
C. — De certa forma, você se sente um caminhoneiro?
R. — [Com muita convicção] Me sinto mesmo. Sinceramente. E não só quando estava fazendo a música. Normalmente, quando estou compondo, eu me coloco na situação, vamos dizer, me pondo na boleia de um caminhão para imaginar como seria tudo aquilo que estou dizendo na canção. Além disso, eu dirigi o caminhão usado na gravação do especial da Globo - e isso foi um grande barato. A sensação que tive... foi uma emoção! Mesmo! Dirigir um caminhão daqueles, sair, manobrar... Sabe?
C. — Você não teve medo de se dar mal?
R. — Quando peguei o caminhão fiquei um pouco nervoso, um pouco preocupado. Mas 100 metros adiante já estava familiarizado, já tinha intimidade com ele... [Risos.] Manobrar uma carreta é uma coisa fascinante!
C. — Uma vez você chegou a dirigir o caminhão quase o dia inteiro. Não foi cansativo?
R. — Nesse dia, realmente fiquei cansado no fim. Mas, enquanto estava na boleia, nem percebi, porque me sentia realmente muito envolvido. Entusiasmado, curtindo muito. Eu dirigia até quando as cenas não exigiam.
C. — Mesmo curtindo tanto, o cansaço pesou no fim do dia. Imagine, então, Roberto, a situação dos que ganham a vida como caminhoneiros, e que às vezes até atravessam o dia e a noite trabalhando.
R. — Eu posso imaginar, sim. Depois que fiz a música, passei a observar mais a vida dos caminhoneiros, tenho conversado com eles. Fiquei impressionado com aquelas reportagens na Globo sobre a insegurança nas estradas. Fiquei bastante preocupado.
C. — Como foram essas suas conversas com caminhoneiros?
R. — Por exemplo, quando fiz uma gravação para o Fantástico, conversei com um. Ele falou de alegria pela música e me fez perguntas sobre minha ligação com caminhões, com a estrada. E me contou as histórias dele, seus problemas, aquelas barras que enfrenta, problemas com o caminhão, a chuva.
C. — Você chegou a fazer alguma pesquisa para poder usar na música aquelas palavras tão próprias do mundo do caminhoneiro?
R. — [Convicto] Não, eu já conhecia. Eu já conhecia. Tenho um amigo, o Cabinho, que trabalhou como garçom num hotel em Águas de São Pedro (SP), agora trabalha com a gente, e que sabe muito sobre caminhoneiros. A gente ia mostrando a letra, enquanto estava compondo, e ele reclamava: "Poxa, ainda não falou disto, não falou daquilo. E a gente dizia: "Pera aí, bicho!". Porque havia muita coisa para dizer. Aí, quando a gente disse que ia falar de banguela, ele deu um pulo. [Risos.] Mas como falar de banguela, uma coisa tão... tão preocupante, né?
C. — A banguela é uma daquelas coisas condenáveis, mas a que alguns caminhoneiros são levados na dura luta pela sobrevivência, com fretes baixos e combustível caro.
R. — Exatamente. A gente entende esses problemas todos, as dificuldades financeiras, tudo o que um caminhoneiro enfrenta - mas, se puder evitar a banguela... Se puder, não - é muito bom evitar a banguela. O certo é evitar a banguela.
C. — É um conselho aos caminhoneiros?
R. — Não sei se posso dar conselhos para um caminhoneiro, entende? Cada um sabe de si. Mas uma palavrinha a gente sempre arrisca, né? A gente sabe que a banguela é muito perigosa. Então eu me sinto feliz de ter aproveitado a música para dar uma mensagem positiva, essa espécie de alerta em relação à banguela.
C. — Mas, em matéria de como dirigir veículos, você nem sempre foi tão "ajuizado", Roberto Carlos. Suas músicas mais antigas já mostraram você parando na contramão, ou dizendo: "Corro demais só para te ver, meu bem".
R. — [Com um ligeiro sorriso e uma atitude evocativa] É verdade. É verdade. Ou então: "Vou a 200 quilômetros por hora". Se bem que é uma situação um pouco diferente quando você fala de um carro. Você é levado a falar mais de velocidade. Você cria histórias dentro dessa velocidade.
C. — A mensagem contida em Caminhoneiro não refletiria também seu amadurecimento pessoal?
R. — Acho que sim. Na época em que eu fazia músicas falando em velocidade porque encarava as coisas daquela forma - não sei se faria uma música como Caminhoneiro. Acho meio difícil.
C. — Como nasceu Caminhoneiro?
R. — Como todas as canções. Elas sempre começam com alguns acordes no violão ou no piano. Depois eu e o Erasmo nos encontramos para completar aquilo que um ou o outro começou.
C. — No caso de Caminhoneiro...
R. — Começada por mim, no piano. Mal surgiu a melodia e eu já comecei a cantarolar uma letra: [cantarola] "Todo dia quando eu pego a estrada... tá-tá-tá..." E ai seguiu naturalmente: [cantarola] "... meu amor aumenta mais". Aí pensei: "Poxa, que legal!". E me lembrei até que a Blitz fez uma música também falando do caminhoneiro, só que com um enfoque brincalhão, essa coisa que a Blitz faz muito bem. Pensei: "Poxa, a Blitz fez uma música falando do caminhoneiro, agora estou fazendo também, mas o enfoque é outro". Aí segui em frente. Engatei uma segunda… [Risos.]
C. — Mas, quando você cantarolou "Todo dia quando eu pego a estrada", já era um caminhoneiro ou poderia ser o motorista de um carro?
R. — [Bem afirmativo] Já era um caminhoneiro, já era um caminhoneiro. Eu pensei assim: "Puxa, isto aqui tem alguma coisa a ver com caminhoneiro". Porque, além de tudo, essa música é meio country [música rural norte-americana.] Ela é meio country, não - ela é bem country. E, normalmente, nos filmes com temas de caminhoneiros, quando pinta um caminhão, logo se ouve um banjo [imita o som do instrumento], né, fazendo alguma coisa meio country. E o caminhoneiro, mesmo o brasileiro, gosta de um chapéu de cowboy, gosta de botas, essas coisas. O caminhoneiro tem muito a ver com a música country. Aí liguei o fato de aquele ritmo no piano ser meio country com um tema - o caminhoneiro - que tem muito a ver com a música country. E a partir daí me vieram todas aquelas imagens de Cachoeiro. Quando mostrei a canção pro Erasmo, ele disse: "Poxa, mas isto é sensacional!" E passamos a trabalhar juntos pra completar a composição.
C. — Deu muito trabalho pra fazer?
R. — Não deu trabalho pra encontrar as ideias, as imagens. Ao contrário, o que deu trabalho foi selecionar as melhores coisas, porque havia muito o que dizer. O tema é muito rico. Daria muito pra fazer até duas músicas, em vez de uma.
C. — Quanto tempo vocês levaram?
R. — Umas duas semanas, quinze dias. Claro que fazendo também outras coisas nesse período não foram oito horas de trabalho por dia só nisso. Foram, digamos, duas horas num dia, quatro no outro, às vezes seis ou até mais.
C. — E o que isso representa na comparação com as músicas que levaram mais e as que levaram menos tempo pra ser feitas?
R. — Caminhoneiro ficou na média. Já teve músicas que tomaram praticamente um mês. Jesus Cristo, então, só ficou pronta seis meses depois de começada. Claro que também não trabalhei nela todo esse tempo. De vez em quando eu pegava, trabalhava um pouco. Outra difícil e demorada foi O Ano Passado, que fala de ecologia. As Baleias, dentro do mesmo tema, também levou tempo.
C. — O que o levou a fazer de Caminhoneiro o carro-chefe do disco, colocando-a na faixa 1 do lado A e imprimindo a letra na contracapa?
R. — Quando tinha composto só metade da música, eu já senti a força dela. Quando gravei o playback, então [playback é a gravação da parte instrumental, sobre a qual o cantor colocará sua voz], percebi que a música era mesmo muito forte. Ela cresceu muito com a orquestração, com o arranjo. E ainda fiz uma segunda voz que resultou num country chegadinho assim para o sertanejo. Tem gente que diz: "Poxa, Roberto Carlos fez um brega". [Brega é um tipo de música com características um pouco sertanejas e um pouco suburbanas, e que alguns críticos consideram de mau gosto.] Se está com cheirinho de brega, foi de propósito! Pus a segunda voz mesmo para ficar com esse ar brejeiro de música sertaneja. Quis juntar esse toque sertanejo com o toque country, e acho que a mistura ficou com uma dosagem bem equilibrada.
C. — Se você tivesse um caminhão, Roberto qual a frase que escreveria no para-choque?
R. — [Pensa um pouco. Em seguida ri. Pensa de novo e aí diz, com convicção:] "Tô com Deus e tô contente". [Risos.]
C. — Então já tá escrito! Depois disso vai aparecer muito nos para-choques. Agora, e quanto à carga? Se você fosse um caminhoneiro, que carga gostaria de levar?
R. — [Pensa uns instantes.] Alimentos. Alimentos e… flores [Risos.]
C. — As flores eu até que esperava…
R. — [Ainda rindo] Lógico que toda carga tem sua importância, mas… A flor, representando o amor… E o alimento porque é necessário à sobrevivência física. Enfim, eu gostaria de transportar arroz, feijão e flores! [Risos.]
C. — Você tem recebido muitas cartas de caminhoneiros?
R. — Sim, eles escrevem me dando parabéns, a mim e ao Erasmo.
C. — O que dizem?
R. — Dizem coisas bonitas: "Que Deus os abençoe". ["Amém", diz Roberto, em tom sério, como se respondesse ao voto.] Dizem que estão orgulhosos, agradecem. Ou dizem [fala pausadamente, como se quisesse repetir a ênfase contida nas cartas]: "Meu amigo caminhoneiro Robertão!" Ou: "Companheiro Roberto Carlos", "Carreteiro Roberto Carlos". Essas cartas me emocionam. Emocionam sim. Elas têm uma coisa muito forte, essa espontaneidade de um homem escrever uma carta dizendo de sua alegria por uma música que fala dele, do trabalho dele, da vida dele. Isso me emociona muito. Porque tudo é dito de um jeito muito fraternal, chamando a gente de "irmão". Fico realmente feliz, ao receber uma carta de um caminhoneiro dos confins da Paraíba, ou do Rio Grande do Sul, e o autor dizendo: "Meu irmão"...
C. — Mas não foram só os caminhoneiros que gostaram dessa música.
R. — Não, inclusive as crianças gostam muito. Toda hora tenho lindas demonstrações delas, que chegam e me dizem [imitando voz de criança]: "O caminhoneiro! Canta aquela música. Eu vi você dirigindo um caminhão na televisão!"
C. — Entre os adultos, sem contar os caminhoneiros, a que você atribui o sucesso da música?
R. — [Em tom seguro de quem entende do que está falando] É uma canção de amor, né? Acima de tudo, uma canção de amor. E tem uma personagem muito forte, o caminhoneiro. As pessoas gostam de saber das histórias que os outros têm para contar. Uma história de amor é sempre ouvida com interesse. Especialmente a história de amor de um caminhoneiro.
C. — Para os caminhoneiros, que levaram uma vida dura, o orgulho de terem merecido essa canção deve ter contribuído até pra amenizar um pouco as dificuldades que enfrentam. O que você lhes diria agora?
R. — Primeiro, diria que quem está orgulhoso de ter feito essa música, homenageando os caminhoneiros, somos eu e o Erasmo Carlos. Depois diria que eles são homens importantíssimos, porque são os condutores do progresso, onde quer que estejam. São pessoas respeitadíssimas por nós, pois sabemos sua importância. Por fim eu diria: Que Deus os abençoe sempre!
C. — Roberto, você tem andado cheio de compromissos, principalmente depois da gravação do disco e...
R. — [Interrompendo] É que agora estou gravando em castelhano.
C. —Eu sei. E..
R. — [Empolgado]... E a música que está sendo mais difícil de traduzir é Caminhoneiro ! [Ri.]
C. — Então conta aí!
R. — São aquelas coisinhas o farol, o limpador do para-brisa, o painel… Em espanhol é painel mesmo ou é tablero? Acabou ficando tablero. Agora, quando chega na banguela, então, não há como traduzir! Até por uma questão de aproximação de rima, deve ficar marcha suelta, que seria algo como ponto-morto em português.
C. — O disco em espanhol vai ser lançado onde?
R. — Em toda a América Latina e nos Estados Unidos, para o mercado latino de lá. Mas o interessante é o entusiasmo do versionista com Caminhoneiro. [Versionista é quem faz a tradução.] O Oscar [o cubano Oscar Gömez] é um rapaz muito competente, que encontramos na Espanha e que veio fazer esse trabalho. Ele está apaixonado pela música, acha que ela vai fazer sucesso no mundo da língua espanhola. Então, vamos lá! Vamos levar o caminhão por outras estradas. [Risos.] Vamos atravessar fronteiras com esse caminhão!
C. — Eu ia dizer que, por seus muitos compromissos, você ainda não deu entrevista a jornais e revistas desde o lançamento do disco.
R. — Não, ainda não.
C. — Pode-se saber a que a revista "Caminhoneiro" deve a honra desta exclusividade?
R. —Ora! [Ri.] Estou tentando atender a todos. Mas eu sabia que esta entrevista tinha a ver diretamente com o caminhoneiro e com a música que gravei. Sei também que vocês estão lançando a revista agora. E me senti orgulhoso de participar deste número inicial.