A vida nas rodovias representa a liberdade de acordar em uma cidade e dormir em outra, mas o apoio de seus familiares é o principal combustível que alimenta as mulheres caminhoneiras. Elas reclamam da falta de infraestrutura nas estradas.
A inserção das mulheres no transporte rodoviário de cargas desafia empresas e a infraestrutura existente nas rodovias do país a acompanharem as transformações sociais no mundo do trabalho, incluindo as demandas de um novo perfil de trabalhadoras. Duas caminhoneiras estão ajudando nessa evolução: Quelli Pereira Gonçalves e Valdineide Amorim de Oliveira.
No Brasil, são 182.376 cidadãs habilitadas a dirigir caminhões, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Elas correspondem a 6,5% do total de quase 3 milhões de profissionais com carteiras das modalidades requeridas para esse tipo de condução. Se compararmos com os homens, ainda é muito pouco, mas a tendência é que elas tomem um espaço maior nos próximos anos. Hoje, o mercado é predominantemente masculino.
Quelli e Valdineide representam um universo crescente: o de mulheres que não se intimidam com a dureza dessa profissão cercada por estereótipos e assumem o volante de veículos pesados.
É paixão e amor pela estrada. A vida nas rodovias, no comando de grandes caminhões, representa a liberdade de acordar em uma cidade e dormir em outra e as possibilidades de conhecer gente de todo jeito e de aprender, em primeira mão, como funciona o país, apesar da solidão e dos contratempos pelo caminho.
O cotidiano da mulher caminhoneira é marcado pela superação. Quem decide levar a vida na estrada precisa de força física para dar conta do dia a dia, tirar e colocar lonas nas carrocerias e manobrar caminhões enormes. Também desenvolve uma percepção aguçada para identificar os problemas mecânicos de seus veículos e as “armadilhas” na pista.
Quelli Pereira Gonçalves, está na estrada há 15 anos. Ela começou dirigindo ônibus urbano; como carreteira está há seis meses. Mãe de um jovem de 17 anos idade, Kayo, dá o maior incentivo à sua mãe em relação à profissão.
Dentro do caminhão Constellation 25-420 transportando cargas diversas, Quelli ressalta que deveria mudar nas estradas é uma coisa simples: o fornecimento de mais suporte em termos de acesso a banheiros, porque não tem... Alguns lugares não possuem banheiro feminino. Você tem de usar o banheiro junto com o dos homens. Hoje, alguns postos já possuem esses locais, onde podemos tomar até banho, mas ainda assim, são minoria”.
A motorista Quelli, da JSL Logística, se diz satisfeita com a profissão. “Graças a Deus, é uma coisa que eu amo desde pequena. Principalmente, em relação aos colegas de trabalho, homens, pois eu achei que teria um pouco de divergência nessa parte devido ao fato de ser mulher. E pelo ao contrário, fui muito bem aceita por eles. Nós estamos sendo bem acolhidas. Eles ajudam muito, são pessoas que protegem e são companheiros de estrada.”
Conciliar profissão com família não é fácil, segundo a caminhoneira Quelli. “A saudade é imensa, você fica quinze, vinte dias fora e até mais. Contudo, eu tento conciliar virtualmente enquanto eu estou ausente. Não é fácil. Ainda mais eu que sou mãe solteira, meu filho tem 17 anos, vou falar para você, é difícil, no entanto consigo conciliar. Tenho ajuda da minha família, eles são a minha base”.
A família de Quelli lhe dá apoio desde o início. “Eles gostam. Sempre tem aquela preocupação e cuidado de todos, né? Minha mãe, meus irmãos, eles ficam sempre preocupados porque a estrada não é fácil e não é segura. Meus familiares me apoiam e estão ao meu lado”.
A família de Quelli vê a profissão como a de uma heroína. “ Os heróis da estrada... Pois sabem de todos os riscos que passamos nas estradas, e precisam se ‘conformar’ com os desafios que enfrentamos pelo Brasil. Neste sentido, a JSL se preocupa muito com os equipamentos que vamos manusear em termos de manutenção e para prover mais segurança para nós nas estradas. Em relação à segurança pessoal, nós temos uma central de monitoramento que nos ampara de várias formas. Por exemplo, com um botão de pânico no caminhão, para ser acionado caso aconteça alguma coisa na pista, também em caso de assalto. Automaticamente, sem ruído, o botão aciona a central de monitoramento da JSL que envia polícia, resgate, o que for necessário, conforme a situação. A Central de Monitoramento também nos ampara em caso de quebra, no meio da estrada, no caso de alguma avaria. E também temos a parte de orientação, com cursos, palestras. Fizemos curso com a Central de Monitoramento, orientando todas as formas de segurança no trajeto e com o GR – gerenciamento de risco, que autoriza a saída com as cargas, que avaliam áreas de risco a serem evitadas, os melhores trajetos em termos de segurança”, explica.
Valdineide Amorim de Oliveira tem 17 anos de estrada. Mãe de Isabelle de 20 de idade e Tâmara 25 anos tem orgulho de seus familiares por entenderem a sua profissão. Funcionária da empresa JSL, tradicional em logística rodoviária, no Scania G 450 transporta peças para montadoras e caminhões 0km também. “Atualmente, estou em uma transportadora carregando chassi para linha de montagem da Mercedes”, diz Valdineide salientando que já trabalhou com carretas e trucks.
No seu ponto de vista, a Valdineide acredita que uma das principais coisas que precisa mudar é a disponibilidade de banheiro adequado. “Ainda encontramos muita dificuldade para encontrar banheiros limpos e preparados para receber mulheres, além de que geralmente são muito próximos ou mesmo ao lado do banheiro dos homens, o que causa muito incômodo, pois no momento em que estamos tomando banho e buscando relaxar, isso acaba se transformando em minutos de muita pressa e aflição para nos vestirmos rapidamente e sairmos.”
Valdineide é feliz por ter realizado o seu sonho de criança! “Hoje, ser caminhoneira é um orgulho tremendo, pois sinto representar mulheres que estão sempre batalhando e no caminho de conquistar seu espaço nos mais variados campos de profissão. Para mim, é muito normal ser caminhoneira, pois estou nesse ramo há muito tempo e junto de outras colegas também. Tenho ciência que estamos quebrando tabus e que faço parte disso. É muito gratificante quando pessoas acenam e buzinam para mim na estrada quando estou no caminhão, até mesmo batem palmas às vezes!”
Assim como todas as mulheres, a motorista profissional encontra uma forma de organizar o tempo para o marido, para as filhas, para a casa, para o trabalho e, principalmente, para ela mesma. “Sempre tive muito apoio da minha família e isso foi crucial para ser quem sou e estar onde estou. Sem o apoio deles, não sei como seria. Quando as meninas ainda eram pequenas, elas me ajudavam limpando toda a casa depois da escola, meu marido cozinhava quando chegava do trabalho e eu fazia as demais tarefas, assim acabávamos mais cedo e tínhamos mais tempo para aproveitar juntos e descansar; então sempre foi tranquilo.”
Toda a sua família sente orgulho de Valdineide. “Eles postam fotos minhas em caminhões e vibram sempre com minhas conquistas. Isso me motiva ainda mais para superar todos os desafios da nossa profissão, é realmente muito gratificante”.
No entanto, Valdineide não se ilude e vê a profissão como muito difícil. “Ela exige enorme atenção e responsabilidade, muitas vezes é bastante desafiador realizar a carga e descarga, pois nem todos os locais têm ampla acessibilidade e precisamos pensar rapidamente, ter uma visão holística e ser muito boas em manobras um tanto quanto complicadas. Mas para quem realmente ama o que faz, que é o meu caso, é muito prazeroso. Vejo isso como uma válvula de escape para todo o resto. Quando estou no caminhão sinto estar conectada comigo mesma, sinto orgulho e uma realização muito grande. Ser caminhoneira me faz sentir muito poderosa!”, finaliza.