Não é justo quem transporta o progresso do Brasil comer carne de segunda, enquanto um ladrão de terno e gravata come picanha. Para você ler isto, pelo menos um caminhoneiro teve que trabalhar.
Entra ano, sai ano e é sempre a mesma história. No dia do Caminhoneiro todos querem render homenagens a esses profissionais que cruzam o Brasil levando e trazendo de tudo. Parece que é apenas no dia 25 de julho que eles merecem respeito. Mas não é bem assim.
Por incrível que pareça, esses profissionais, acostumados a enfrentar estradas esburacadas, assaltantes, dormir ao relento, ganhar pouco e trabalhar ao extremo para cumprir horários e entregar as cargas da forma mais rápida e segura, só querem uma coisa: respeito.
“É preciso ter mais respeito com os caminhoneiros”, afirma Délcio Pavan, 48 anos e 16 de estrada. “Se você se veste usando bermuda, chinela e camiseta, as pessoas acham que você não tem dinheiro para pagar, só porque está com uma roupa mais simples você é desrespeitado”.
Pavan conta que já viu em algumas churrascarias, os garçons passarem várias vezes servindo picanha para pessoas com terno e gravata e deixando os caminhoneiros com asinha de frango e alcatra.
Bruno Henrique da Matta, de 27 anos de idade e com oito de caminhoneiro, afirma que começou com 18 anos, mas aos 21 “caiu no mundão”. Morador de Nova Mutum, MT, trabalha para uma transportadora de Santa Catarina e leva feijão para o Brasil inteiro dirigindo um Volvo FH 500.
“A saudade da família é ruim, mas o pior mesmo é constatar que o caminhoneiro não tem valor nenhum, são raros os locais onde somos tratados com respeito”, diz Matta.
“Às vezes, a gente faz uma viagem longa, cansativa, e na hora que vai receber somos tratados com ignorância. Você tem que ficar, engolir a seco e ainda ser gentil. As pessoas não sabem o que passamos nas estradas, enfrentando chuva, sol, frio, buracos, ladrões. E isso pega fundo em mim. Fico muito triste. Saímos de casa para levar o produto, o alimento para as pessoas, e ninguém dá valor”.
Matta gostaria que essas pessoas que desrespeitam os caminhoneiros se colocassem no lugar deles, passassem 25, 30 dias fora de casa, correndo os riscos que eles correm para entregar os produtos que eles precisam. “Eles deveriam se por em nosso lugar para ver o que passamos. Quem sabe assim nos respeitariam mais”, desafia Matta.
José Alcides Filomeno Vieira da Silva, de 44 anos de idade e 20 de profissão, tem muitas reclamações para fazer sobre a vida de caminhoneiro, mas a falta de segurança é o que mais atormenta esse profissional que faz a rota São Paulo/Nordeste com caminhão de câmara fria, uma viagem de aproximadamente 3.000km.
“Ninguém cumpre o horário de trabalho, faltam pontos de apoio, só podemos pernoitar em postos se abastecemos”, descreve Silva. “Na Fernão Dias, em Extrema, perto do posto da Polícia Rodoviária Federal, os ladrões estão colocando pedras na estrada, atacando no para-brisa. Um amigo teve o para-brisa estilhaçado por uma pedra, foi até o posto da Polícia Rodoviária Federal, de Extrema, e o pessoal não quis lavrar o boletim de ocorrência, disse que não podia fazer nada”. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) informou que, se houve essa atitude, foi incorreta. A PRF faz Boletim de Ocorrência (BO) em todos os casos. Esclareceu ainda que, se o plantonista se recusar a fazê-lo, o interessado pode fazer o BO em uma delegacia da Polícia Civil e entrar com uma reclamação na Ouvidoria da PRF.
Se no Sudeste a coisa é feia, no Nordeste é o “cão chupando manga”. “No Nordeste não tem nada. Só área perigosa”, diz o caminhoneiro. “Em Ibó, Pernambuco, é uma roleta russa. Quase 200 quilômetros sem ninguém. Quem aparece é ladrão. Como a câmara fria tem sempre a carga horária e não podemos parar, a gente se arrisca passando por esses locais. Se eu for a bola da vez, o negócio é parar, pedir a Deus que me proteja e que me deixe vivo. Eu quero segurança na região. Quer dizer, no Brasil inteiro. Quem entra nesse trecho não sabe se sai. A Polícia Rodoviária Federal deveria ter uma guarnição no local. Há alguns anos a PRF fazia comboios, escoltando ônibus. Hoje nem isso faz”. (Leia o desabafo de um caminhoneiro sobre essa região na seção “Rompendo o lacre”).
Délcio Pavan também critica às más condições dos pátios dos postos fiscais da Receita Federal. “Os pátios estão cheios de buracos, quase tombam os caminhões”, reclama Pavan. “Isso quando há vaga. Na maior parte das vezes, não tem vaga e aí a gente fica na rua e vem a polícia e multa. As filas chegam a quase uma hora de espera, apenas por um carimbo. Um amigo meu ficou das 9 às 16 horas para carimbar a nota”.
Segundo Pavan, na maior parte do tempo, se tem seis guichês, em dois há funcionários trabalhando e nos demais têm pessoas conversando ou olhando no WhatsApp. “Por que São Paulo e Rio de Janeiro não carimbam as notas fiscais? Será que no Nordeste é preciso manter um ‘gabide de emprego’? E porque só motoristas profissionais precisam fazer teste antidrogas, quando tem uma porção de ‘filhinhos de papai’ que usam drogas e fazem muito mais barbaridades que os caminhoneiros”.
Sofrimento urbano
Se os caminhoneiros estradeiros sofrem, os que circulam pela cidade também não têm vida fácil. Marco Gonçalves e Robinson Pain atuam no transporte de efluentes químicos, resíduos derramados nas estradas, limpa fossa e qualquer tipo de líquido que precise ser retirado.
“O diesel subiu e o frete ficou estacionado. O frete pode até estar com um valor justo, mas com a subida do diesel ele acaba ficando defasado porque ninguém compensa o aumento do diesel”, contabiliza Robinson Pain, 40 anos de idade, há 22 anos dirigindo caminhão e sócio-proprietário de uma empresa de limpeza industrial. “Como não temos grande capital, para financiar um caminhão novo os bancos judiam da gente. Por isso, ainda, mantenho um Mercedes-Benz 1518, ano 90. Queria ter um caminhão mais novo. Mas ninguém facilita a linha de crédito para nós”.
Pain reclama que os bancos pedem 50% de entrada para financiar. Se o caminhão custa R$ 200 mil, o desembolso será de R$ 100 mil, o que um pequeno empresário como ele não tem.
Marco Gonçalves, de 40 anos, e também 22 de caminhoneiro é amigo de infância de Pain e sócio-proprietário da mesma empresa. A Prefeitura de São Paulo poderia tirar a restrição para caminhões, porque o trânsito continua igual”, afirma Gonçalves. “Perdemos serviços e somos multados apenas porque estamos trabalhando. À noite tem a Lei do Psiu, como nosso caminhão faz barulho, temos mais essa restrição.
Às vezes ganhamos R$ 500,00, mas deixamos R$ 85,00 de multa, fora os pontos na carteira”.
Os amigos de infância não têm folga para conseguirem manter a pequena empresa. “É difícil, não é fácil. A gente acorda cedo, às 3 da manhã, vai dormir meia noite, uma da manhã, sábado, domingo e feriado, não tem conversa. Para a gente tentar vencer”, diz Pain. “E para dificultar ainda mais, em 2011 tivemos um caminhão roubado, o mais novo, um Volkswagen Constellation 24.250, fiquei 9 horas na mão dos ladrões, e com mais oito parcelas para pagar”.
“A gente vem trabalhando e sobrevivendo com esse pouquinho”, diz Marco Gonçalves. “Viemos de baixo, crescendo devagarzinho, sem ajuda de banco, e vamos crescendo. Só pedimos saúde para Deus, para que possamos continuar a trabalhar”.
Os caminhoneiros não brigam por um pedaço de carne. Brigam por dignidade e respeito.texto: Francisco Reis